quinta-feira, 10 de abril de 2014

Vendaval

 
Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio 
Que o meu coração!

Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano 
Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza, 
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza 

É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles - teu pulso divida 
Minh'alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia 
De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque é que não entras no meu pensamento 
Para ele morrer?

Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência, 
De ser um lugar!

E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura, 
Meu tédio profundo.

E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares, 
O meu coração!

Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada 
Do vento sem forma, da noite sem termo, 
Do abismo e do nada!

Fernando Pessoa, 16-2-1920.

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